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Uma Reflexão Sobre o Pensamento Pedagógico de Henri Wallon.
PSICOLOGIA DA INFÂNCIA DE WALLON
Em sua obra Wallon (1981, 1989)
faz oposição a qualquer espécie de reducionismo orgânico ou social e ao
dualismo corpo e alma, entendendo que a compreensão do ser humano deve ter
presente que ele é organicamente social, isto é, sua estrutura orgânica supõe a
intervenção da cultura para se atualizar (Dantas in La Taille, 1992, p. 36).
Ele é datado, sujeito do seu tempo, constituído por uma estrutura biológica que
é ressignificada pelo social (Vila, 1986).
Wallon compartilha com Vygotsky a
mesma matriz epistemológica, o materialismo histórico e dialético, sendo que,
para Wallon (1981), a emoção é o principal mediador, enquanto que, em Vygotsky
(1993, 1991), o sistema de signos e símbolos ocupa tal papel.
Wallon (1981) rompe com uma noção
de desenvolvimento linear e estática, demonstrando que o ser humano se
desenvolve no conflito, sua construção é progressiva e se sucede por estágios
assistemáticos e descontínuos. Os estágios de desenvolvimento importantes para
a formação do ser humano não são demarcados pela idade cronológica, e sim por
regressões, conflitos e contradições que propiciem que se reformulem e ampliem
conceitos e funções. Em cada estágio, há predomínio de uma determinada
atividade que corresponde aos recursos que a criança dispõe, no momento, para
interagir com o ambiente (Galvão, 1995, p. 43).
Ao longo dos estágios o
desenvolvimento da criança aparece de forma descontínua, com contradições e
conflitos resultantes das interações e das condições do meio. O conflito ocorre
entre a atividade predominante de um estágio e a atividade predominante do
estágio seguinte.
A sucessão dos estágios se dá
pela substituição de uma função por outra, extinguindo algumas e
conduzindo/orientando outras a novas formas de relação.
A mudança de cada estágio
representa uma evolução mental qualitativa por caracterizar um tipo
diferenciado de comportamento, uma atividade predominante que será substituída
no estágio seguinte, além de conferir ao ser humano novas formas de pensamento,
de interação social e de emoções que irão direcionar-se, ora para a construção
do próprio sujeito, ora para a construção da realidade exterior.
Durante a gestação, a vida
intra-uterina é marcada por uma dependência total do bebê em relação à mãe,
caracterizando um anabolismo total, ou seja, uma simbiose fisiológica. Após o
estágio intra-uterino, podemos encontrar seis estágios (Tran-Thong, 1981; Vila,
1986; Galvão, 1995): estágio de impulsividade motora, estágio emocional,
estágio sensório-motor e projetivo, estágio do personalismo, estágio categorial
e estágio da puberdade e adolescência. Os estágios não podem ser interpretados
como uma certa delimitação temporal, um certo número de anos, mas sim como a
quantidade e qualidade das relações com o meio em cada momento do predomínio de
uma atividade particular do desenvolvimento (Dantas, 1983).
Ao nascer, a criança se manifesta
através da impulsividade motriz. Mesmo já possuindo autonomia respiratória, ela
depende do adulto para a satisfação de suas necessidades básicas como nutrição,
higiene e postura. A satisfação dessas necessidades não ocorre de forma
imediata, havendo desconforto causado pela privação, que se traduz em descargas
musculares, crises motoras, representadas por movimentos descoordenados, sem
orientação – pura impulsividade motora. A simbiose fisiológica dá lugar à
simbiose emocional a partir da significação que o social dá ao ato motor da
criança, que se expressa no sorriso e nos sinais de contentamento (Wallon, in
Vila, 1981).
O movimento, por sua vez, é
originado a partir da atividade muscular, que pode ser tônica (tensão muscular)
ou clônica (alongamento/encurtamento dos músculos). Estas atividades são
complementares havendo um predomínio da atividade tônica (Tran-Thong, 1981).
Progressos em relação ao
desenvolvimento vão surgindo na medida em que as agitações impulsivas da
criança vão sendo identificadas e significadas pelo meio. Por intermédio destas
influências recíprocas e trocas mútuas, que orientam as reações da criança, vão
se constituir as primeiras estruturas mentais e novas formas de pensamento, com
ênfase na objetividade em um movimento dialético.
O processo de desenvolvimento
infantil se realiza nas interações, que objetivam não só a satisfação das
necessidades básicas, como também a construção de novas relações sociais, com o
predomínio da emoção sobre as demais atividades. As interações emocionais devem
se pautar pela qualidade, a fim de ampliar o horizonte da criança e levá-la a
transcender sua subjetividade e se inserir no social.
Inicialmente, a manipulação de objetos
se restringe ao espaço bucal, por ser a boca o único local que possui
movimentos coordenados. Com o desenvolvimento do aparato motor, a criança
coordena o movimento das mãos e braços, realizando a manipulação de objetos,
com intencionalidade em suas ações. Nesse período, a função dominante é a
sensório-motora, que desencadeia dupla função: a manipulação de objetos,
facilitada pela marcha, e a imitação, que possibilita a representação e o
pensamento (Vila, 1986).
O desenvolvimento da marcha e da
fala demarcam o início do estágio sensório-motor, propiciando que as relações
com o mundo exterior se aprofundem, se dinamizem e se expandam. O espaço
infantil transforma-se em um campo onde as atividades são ampliadas e os
objetos identificados com maior objetividade. O desenvolvimento da linguagem
possibilita nomear os objetos, propriedades e ações do mundo físico,
representando-os e conceituando-os a partir do significado daquele repertório
da linguagem, que é dado pela sociedade na qual a criança está inserida.
Ao se apropriar do espaço, a
criança desenvolve a inteligência prática, denominada por Wallon (in
Tran-Thong, 1981) de inteligência espacial, por se constituir em atividades
cognitivas ligadas ao espaço exterior. As atividades circulares (sensações que
produzem movimentos e movimentos que produzem sensações, através da coordenação
entre percepção e situação correspondente) garantem o progresso da preensão, do
reconhecimento do esquema corporal e da linguagem, passando a diferenciar-se do
mundo físico.
O período projetivo surge quando
o movimento deixa de se relacionar exclusivamente com a percepção e manipulação
de objetos. A expressão gestual e oral é caracterizada pelo pensamento
ideomotriz (representação das imagens mentais por meio de ações), cedendo lugar
à representação, que independe do movimento. A atividade projetiva produz
representação e se opõe a ela, permitindo que a criança avance em relação ao
pensamento presente e imediato. As atividades predominantes, nesse período, são
a imitação e o simulacro. A partir da imitação aparecem os jogos de ficção, que
permitem realizar uma ação com o objeto, mesmo na sua ausência, o que conduz à
autonomia da imagem, à representação (Wallon, 1989).
O estágio do personalismo é
marcado por oposições, inibições, autonomia, sedução, imitação, que irão
contribuir para a formação e enriquecimento do eu, a edificação interior.
Divide-se em três períodos. Primeiramente, ao buscar afirmar-se como indivíduo
autônomo, a criança toma consciência de si própria, o que é constatado pelo
emprego dos pronomes eu e meu e demonstração de atitudes de recusa (uso do
não). Seu ponto de vista diante do mundo se torna único e exclusivo, e suas
crises de oposição confrontam-se com as pessoas do meio próximo a fim de
imperar sua vontade. Ao conseguir tal objetivo, sente-se exaltada. Nem sempre é
vencedora, e isso lhe causa ressentimentos e diminuição da auto-estima. Ambos
os momentos representam uma crise necessária para a construção do eu, que,
dependendo da forma vivenciada, pode determinar prejuízos em seu
desenvolvimento (Vila, 1981). Os sentimentos de ciúme, a posse extensiva aos
objetos e as cenas para chamar a atenção dos que estão ao seu redor são
características essenciais para se distinguir dos outros. Mas, para tanto, é
preciso haver a participação da representação (Wallon, 1981).
Em um segundo momento, predomina
o período de graça, no qual é marcante o narcisismo da criança que busca
admiração e satisfação pessoal, expressando-se de forma sedutora, elegante e
suave, a fim de ser aceita pelo outro. Só pode agradar a si mesma se sabe que
agrada aos demais[1] (Vila, 1986, p. 77). Se é frustrada em sua necessidade de
afirmação, pode demonstrar timidez. São tais contradições que desencadeiam a
apropriação de papéis e personagens que possuem prestígio, admiração ou atração
para si. A criança passa a reproduzi-los com acréscimo de características
subjetivas, enriquecendo o personagem imitado por ela (Werebe, 1986).
E, finalmente, o último período,
que representa o esforço por substituir o outro por meio da imitação, o período
da representação. É a representação que garante ao pensamento a função de
antecipação e a possibilidade de pensar na relação entre um significante e um
significado, além de expressar simbolicamente os objetos interiorizados.
Os três momentos que caracterizam
o estágio do personalismo acontecem na interação social. As atividades
predominantes estão voltadas para a construção do eu e para as relações
afetivas com o outro, complementando os processos intelectuais, que
possibilitam a substituição dos objetos pelas palavras correspondentes a partir
da apropriação da linguagem (Wallon, 1981).
O lugar ocupado pela criança na
constelação familiar contribui para definir a sua subjetividade, sendo que as
atitudes dos pais frente aos filhos varia, modificando as interações e
mediações entre eles. Além disso, o significado familiar a respeito da
singularidade de cada membro contribui para vivências particulares, sendo
determinado historicamente (Reis, 1985).
O estágio seguinte se divide em
dois períodos: o do pensamento sincrético ou pré-categorial (confuso, geral,
sem distinções) e o categorial (Wallon, 1981; Tran-Thong, 1981).
O pensamento sincrético se
caracteriza pela incapacidade da criança para analisar as qualidades, propriedades,
circunstâncias e conjunturas das imagens ou situações. Encontra-se dominado
pelo concreto, revelando a sua descontinuidade e fragmentação. Há utilização de
pares, que se constituem em um elemento identificável e um outro que o
complemente. O par é anterior ao elemento isolado, implicando em pluralidade a
fim de manter certa coerência em seu discurso, mesmo que tempo, lugar, causa e
efeito sejam confundidos. O pensamento sincrético aparece como uma justaposição
de temas ambivalentes, devida à incapacidade da criança de perceber as
contradições e sair do conflito. O pensamento de pares é um ato intelectual,
inicialmente confuso e mesclado, que supõe vários outros pares concorrentes e
complementares que culminam por desencadear a identificação e diferenciação.
Wallon (1989, p. 33) descreve
várias situações que exemplificam a utilização dos pares para a formação das
estruturas de pensamento: – O que é a chuva? – A chuva é vento. – Então a chuva
e o vento são iguais? – Não. – O que é a chuva? – A chuva é quando tem trovão.
– O que é o vento? – É a chuva. – Então é a mesma coisa? – Não, não é igual. –
O que é que não é igual? – É o vento. – O que é o vento? – É céu.
A estrutura de pares é etapa
necessária ao desenvolvimento do pensamento categorial, permitindo à criança
afirmar as qualidades e as relações existentes, a partir dos conflitos e
contradições entre a estrutura elementar do par e as interações entre os pares.
No segundo período, o pensamento
torna-se categorial, passando a haver a representação das coisas e a explicação
do real, iniciada com a integração das diferenciações produzidas durante o
período pré-categorial. A criança já consegue representar de forma estável e
apropriada, identificando e definindo os objetos. A classificação já é lógica,
discernindo e organizando as semelhanças e diferenças dos objetos e ações, o
que conduz a representações fixas e constantes. Para tanto, a atividade de
comparação dos objetos entre si é fundamental para a análise e classificação
dos mesmos. É com o desenvolvimento da função categorial que a apropriação da
causalidade se faz presente, possibilitando que a criança ligue o efeito à
causa que o produziu. A noção de espaço e tempo passam a integrar-se a um
sistema permitindo que a criança relacione as suas implicações com o movimento.
O presente estágio tem como
atividade dominante a conquista e o conhecimento do mundo exterior, contando
com a aquisição do pensamento categorial para que a criança se reconheça como
pessoa polivalente e identifique as diversas características dos objetos e
situações ao estabelecer relações e distinções coerentes (Vila, 1986). Aumenta
a concentração e atenção na atividade, permitindo que as atividades espontâneas
sejam progressivamente substituídas por atividades intencionais. Tais
diferenciações, no nível de operações mentais, culminam com a formação das
categorias intelectuais, tornando possível a representação e explicação da
realidade, pois a criança supera suas vacilações em relação à linguagem, na
medida em que os termos gramaticais tomam a forma e o sentido da linguagem
adulta (Idem, ibidem).
Wallon (1981) estabelece este
momento como o determinante da personalidade polivalente, por dar início à
participação em diferentes grupos não institucionais, desenvolvendo, em cada um
deles, um papel determinado, que enriquece sua identidade.
Começa a se delinear o estágio da
puberdade e da adolescência, no qual as exigências para a construção da
identidade adulta se impõem. A crise adolescente é marcada por ruptura,
inquietude, ambivalência de atitudes e sentimentos, oposição aos hábitos de
vida e costumes. Tal oposição se traduz na busca da consciência de si, na
integração do novo esquema corporal, na apropriação da identidade adulta
(Tran-Thong, 1981).
São as significações sociais
dadas às modificações corporais do adolescente que engendram descontentamento e
desejo de transformação. Surgem as dúvidas metafísicas e científicas, além da
crítica ao modelo hipócrita dos valores burgueses (Vila, 1981). A vivência da
adolescência é uma construção histórica.
Apresentamos o desenvolvimento do
ser humano na concepção de Wallon (1981, 1989) sem fazer menção direta a sua
relação com a aprendizagem, contudo precisamos reafirmar que tal relação é
constante, uma vez que a aprendizagem ocorre na interação. Sua teoria aponta a
escola/educação como um meio promotor do desenvolvimento (Galvão, 1995, p.
114).
A sala de aula deve ser um
ambiente de cooperação, um espaço heterogêneo e de troca, onde os alunos que
dominam uma dada função promovam o desenvolvimento desta função em seus
colegas. Ao professor cabe a tarefa de promover a colaboração entre os alunos,
socializando e construindo conceitos. As idéias devem ser constantemente
reformuladas no confronto com a realidade, considerando as contradições
sociais. A educação deve ajudar a criar as condições para que os alunos sejam
transformadores da sociedade e de si mesmos (Werebe, 1986). Os procedimentos
educacionais que tendem a abafar a atividade intelectual, (…) abolir a autocrítica
individual e a compulsão gregária reduzem o homem a estágios que ele já havia
superado (Ibidem, p. 153).
A riqueza da Psicologia da
Infância demonstrada nos estudos do ser humano concreto e em constante
transformação; a idéia circular de desenvolvimento humano, a visão integradora
e a opção contrária a qualquer reducionismo e dicotomia permitem ao educador
uma constante reflexão sobre a problemática educativa e, conseqüentemente,
mudança de sua prática pedagógica.
[1] A tradução do espanhol da
citação é de autoria do grupo de estudo da Secretaria de Educação do Estado de
santa Catarina.
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